Adoniran Barbosa, Saudosa Maloca. Texto de LÚCIA OLIVEIRA DA SILVEIRA SANTOS. São Paulo Dá Samba
Saudosa maloca
Após o sucesso repentino de “Dona Boa” e que foi embora tão rápido quanto veio, Adoniran Barbosa dedica-se a outras profissões. Segundo Moura (2002), Adoniran atuou, entre outras coisas, como caixeiro, tipógrafo, oleiro, comerciante, funcionário público, garçom e varredor. E, nos quinze anos posteriores, suas composições retratam cenas de amor e embarcam na fase melodramática pela qual a música passaria e que seria chamada de “dor-decotovelo17”. Trabalhando nas estações de rádio paulistanas, maior veículo de
comunicação da época, Adoniran Barbosa conhece Osvaldo Moles, roteirista de rádio que cria diversas personagens para serem vividos por ele, utilizando uma linguagem que misturava as letras, que não seguia regras gramaticais, mas que era genuinamente paulista – uma vez que São Paulo estava repleta de imigrantes que mal conheciam o português e tentavam se entender criando, assim, um novo dialeto.
Adoniran incorpora esse jeito caricato de falar e começa a compor também como uma personagem caricata – vale ressaltar que o autor, como a maioria de seus contemporâneos, também não conclui nem mesmo o ensino primário. Milton Parron (2004, p. 67), destaca que, por meio de suas composições, Adoniran
[...] deu voz aos excluídos sociais, muitas vezes compondo em uma
linguagem que reconstituía a mistura de diferentes sotaques dos
imigrantes de São Paulo. Ele foi um dos poucos artistas capazes de
retratar sua gente, a realidade urbana dos anos 1950 e 1960, o cotidiano
paulistano da época, suas personagens anônimas e o progresso, que
demolia casarões e cortiços para edificar arranha-céus.
16 Um dos ditados que Osvaldo Moles escreveu para Adoniran narrar, por meio do personagem Charutinho,
no programa História das Malocas. (CAMPOS JR, 2004, p. 313).
17 Esse estilo musical surgiu em 1929, tornou-se conhecido nas canções de Lupicínio Rodrigues (1914 -
1979), principalmente nos anos 1940 a 1950, com canções melancólicas que expressavam desilusões
relacionadas ao amor. (FALCÃO, 1988)
Assim, em 1951, nasce uma de suas mais famosas composições – que o
consagra definitivamente como o maior compositor de sambas paulista:
“Saudosa Maloca”.
Saudosa maloca, maloca querida
Onde nós passemo dias feliz de nossas vida
Se o senhô não tá lembrado dá licença de cantá
Que aqui onde agora está esse edifício arto
Era uma casa véia
Um palacete assobradado
Foi aqui seu moço
Que eu Mato Grosso e o Joca
Construímo nossa maloca
Mas um dia, nem quero me lebrar
Chego uns homes co’as ferramenta
O dono mandou derrubar
Peguemo tuda nossas coisas
E fumus pro meio da rua
Espiá a demolição
Que tristeza que eu sentia
Cada tauba que caía doía no coração
Mato Grosso quis gritar
Mas em cima eu falei
Os home está co’a razão
Nóis arranja otro lugar
Só se conformemos
Quando o Joca falou
Deus dá o frio
Conforme o cobertor
E hoje nóis pega paia
Nas grama do jardim
E pra esquece nóis cantemos assim
Saudosa maloca, maloca querida
Onde nós passemo dias feliz de nossas vida.
A cidade de São Paulo é dinâmica e exige desapropriações, porém, partindo do pressuposto que:
[...] a Hospitalidade [...] é um fenômeno que implica uma organização,
um ordenamento de lugares coletivos e, portanto, a observação das
regras de uso desses lugares.
Essas regras devem ser, portanto, observadas e preservadas por meio
dos princípios de hospitalidade como, por exemplo, assegurar a todos os
cidadãos o acesso a equipamentos e serviços, transportes públicos,
trabalho, etc. (GRINOVER, 2005, p. 94).
A cidade não nos parece assegurar os direitos do cidadão e, portanto, a observação de Adoniran é um registro da hostilidade de São Paulo para com os seus. A história de “Saudosa Maloca” é o primeiro registro das preocupações socioculturais que perpassam a maioria das composições posteriores de Adoniran Barbosa. Retratam questões urbano-sociais de identidade, legibilidade e acessibilidade, de maneira sutil e tragicômica. Tragicômico porque, segundo Bento (1990, p. 222):
Adoniran Barbosa é um contador de estórias por excelência. A maioria
de suas músicas se faz no diálogo entre estes dois pólos: o trágico e o
cômico. Chora o atropelamento através do requebro do sincopado do
samba; chora o desamor na batida da caixa-de-fósforos; chora a
demolição no rasqueado do cavaquinho. Sua linguagem humorísticomusical
“ri da própria sorte” na legitimidade do samba.
Dentre essas questões urbano-sociais, uma das mais retratadas por Adoniran Barbosa é a questão da moradia, presente em “Saudosa Maloca”. Para melhor contextualizar esse estudo, acredita-se que caiba, aqui, uma investigação sobre a origem das malocas. As mais antigas habitações proletárias de São Paulo eram os cortiços, de muitos cômodos, que se expandiam com a chegada dos imigrantes. Nas últimas décadas do século XIX, cresciam as casas próprias de periferia, cujo agrupamento é denominado favela (KOWARICK e ANT apud KOWARICK, 1994, p. 73). Os dois tipos de habitação ficaram conhecidos popularmente como “malocas”. A explicação tem inspiração no termo indígena, que designa uma moradia onde vivem e convivem diversas famílias (LOPES, 2005, p. 11). No nordeste, o termo “maloqueiro” (morador da maloca) tinha conotação pejorativa, relativa a pessoas suspeitas, de baixa confiança (MANDULÃO, 2003, p. 8). Com a forte migração nordestina para São Paulo e o grande número de cortiços habitados, principalmente por italianos, a gíria teria adquirido um único significado e toda habitação que abrigasse muita gente, pobres ou mendigos, consideradas como sub-moradias foram tachadas de maloca. No entanto, a melhor descrição para as malocas retratadas por Adoniran Barbosa, parece ser aquela feita por Osvaldo Moles18, companheiro do compositor, que teria sido o principal responsável por fazer com que o artista visse, nas questões sociais, temáticas para suas músicas. Segundo Moles:
A maloca é o maior esforço que o nada já conseguiu fazer para chegar a
ser casa. A maloca mais confortável consta de quatro caibros, umas
traves, algumas latas de banha em que se bateu até voltarem ao estado
normal de folha. Cômodo único em que se faz cozinha, refeitório,
dormitório, banheiro, vida social, vida insocial etc. Nesse ajuntamento de
taperas – onde casa nova já nasce em ruínas -, nesse conglomerado
irregular, como dentadura de “baiano” mordendo a paisagem, é que vão
nascendo os tipos da última escala da humanidade. (MOLES, s/i apud
CAMPOS JR, 2004, p. 313)
É nesse mundo de “malocas” que se dá a saga dos amigos do narrador, Mato Grosso e Joca, iniciada por uma frase que retrata o vínculo dos moradores com a residência, por mais que esta seja apenas uma maloca: “Saudosa maloca”. Para Bento (1990, p. 50), a temática de Adoniran
[...] falava muito em maloca apesar de nunca ter morado em favela e
nunca ter sido maloqueiro. [...] O marginal a qual Adoniran se referia em
sua humorismo radiofônico e em suas composições, não era o
maloqueiro completamente dito, mas aquele indivíduo pertencente à
classe social menos privilegiada e sem emprego.
Na década de 1950, quando “Saudosa Maloca” foi escrita, já eram abundantes as residências mal organizadas urbanisticamente. Segundo Souza (2004, p. 547) a chegada descontrolada de migrantes e imigrantes e o processo de verticalização que se dava no período, acelerou o processo de formação das periferias, das moradias sem infra-estrutura adequada, que caracterizavam a paisagem de São Paulo em contraposição aos edifícios luxuosos que se erguiam.
O inchaço populacional representou, para a paisagem da capital
paulista, a incorporação das favelas – uma característica das metrópoles
subdesenvolvidas. Acentuava-se o desequilíbrio entre as áreas mais
próximas do centro, bem organizadas urbanisticamente – e a ocupação
18 - Cf. Capítulo 1: “A música de Adoniran Barbosa como fonte de pesquisa”.
caótica da periferia – com sua enorme população de baixa renda,
formada, sobretudo, por migrantes pobres. (PARRON, 2004, p. 60)
É evidente que, na letra de “Saudosa Maloca”, retrato do processo de verticalização da cidade nos anos 1950, as lembranças que seus moradores criaram, em sua memória, o retrato de um local muito distante da concepção de
uma maloca, que é comparada à degradação, mas algo mais próximo de um lar, um local onde vivenciaram bons momentos, próximos uns dos outros: um “palacete”. Segundo Ponciano (1999, p. 18), as malocas que formaram as favelas eram consideradas pelas secretarias responsáveis como simples invasões de espaços públicos e privados, sequer ganharam o “status” de habitação; são elementos que apenas “enfeiaram” a paisagem. Embora aqui exista uma clara relação da música de Adoniran com a questão de legibilidade, já que a preocupação maior do autor parece ser o acesso da população à moradia. Segundo Pochmann (2001, p. 87), em 1950, menos de 16% das famílias de trabalhadores possuíam casa própria. A verticalização de São Paulo, na década de 1950, que visava o desenvolvimento da chamada “locomotiva do Brasil”, não escapou aos olhos do compositor, que, por intermédio dos olhos dos moradores da maloca, retrata a edificação dos bairros. Embora tristes, as personagens citadas se conformam diante da “não poder fazer nada” e do poder que é conferido aos “homens com ferramentas”. Inusitado é o fato de suas personagens interagirem com o responsável pela demolição (“Seu Moço”), contando-lhes sua história. A inspiração teria vindo por meio de uma nota de jornal, onde o autor verificara que o prédio que abrigava alguns amigos, moradores de rua (Matogrosso, Mário e Corintiano), seria demolido para a construção de um edifício. (MOURA, 2002, p. 83) Embora muito comuns na época, as demolições sempre foram realizadas por pessoas que também são da classe trabalhadora e que possuem poucos recursos, muitas vezes habitando locais semelhantes aos que derrubam. A necessidade de trabalho faz com que excluídos socialmente sejam também os
executores da demolição da moradia de seus semelhantes. Talvez, por acreditarem que suas vidas possuíam aspectos semelhantes, as personagens de Adoniran realizem um desabafo com os demolidores, mas recebem a resposta resignada dos que devem apenas executar o serviço e “têm razão” em dizer: “o dono mandou derrubar”. O dono, supostamente de outra classe social, é colocado como sujeito-oculto por Adoniran, embora causador da expulsão dos invasores, não presencia a cena da demolição.
Por fim, o compositor retrata um dos rituais do trabalhador braçal: “pegar uma paia”, ou seja, um cochilo após as refeições. As personagens aproveitam para vivenciar o momento no gramado da edificação construída no local que um dia lhes pertenceu, e a saudade é também confortada pela cantoria. Neste caso, fazem-se presentes na obra aspectos referentes à identidade paulistana, de um
povo trabalhador, operário das fábricas e das obras de verticalização. Cinco anos mais tarde, Adoniran, em parceria com Raguinho, voltaria à temática e daria vida novamente às personagens em “Arranjei outro lugar”.
Falei,
Com Mato Grosso a noite inteira
Pra ele se agüenta
Falei,
Que já arranjemo outro lugá
Pra nóis tudo ir mora!
Ele chora feito criança
Não qué se conformá
Tá sempre cantando assim
Saudosa maloca
Maloca querida
Dindindonde nóis passemo
Dias feliz
De nossas vida
Em “Arranjei outro lugar” a resignação dos antigos moradores diante do infortúnio desaparece, mas o choro é a única maneira utilizada pela personagem para extravasar o inconformismo. Cabe, aqui, lembrarmos Matheus, quando afirma que “esse enraizamento espacial pode ser mais ou menos forte, mas não se pode conceber um ser humano ou uma coletividade que não tenha algum tipo de vinculação espacial” (MATHEUS, 2002, p. 64). Por mais que exista um novo lugar para os desalojados, o vínculo com o local antigo permanecerá. Pode-se traçar uma relação da música de Adoniran Barbosa com as considerações que Lima (1997) faz em relação à visão de modernidade e o progresso que impera na São Paulo dos anos 1950. Para a autora progresso e mudança são noções que só puderam se constituir sobre a lógica do arrasamento, da desconstrução, da demolição de casas. Se, para as personagens de Adoniran, essas construções eram representações de segurança e acolhimento, representavam também, no processo de verticalização da cidade, uma imagem do passado que se pretendia superar (Id. Ibidem, p. 90 et seq.). Ainda na década de 1950, a questão da moradia foi novamente tema das composições de Adoniran, suscitando a necessidade de trabalhar para conquistar uma nova casa. Desta vez, o narrador não se submete às autoridades, ao contrário, solicita a um amigo com certa ascendência política, que consiga uma autorização para a construção de seu novo lar, mesmo que por meio de certas ilegalidades. A corrupção política, ou talvez a força das relações pessoais que se sobrepõem à letra da lei, é mais uma das colocações do artista sobre o cotidiano da cidade. As ilegalidades e as amizades poderosas parecem não ser um “privilégio” da sociedade atual, tendo raízes mais antigas:
Abrigo de Vagabundo (1958)
Eu arranjei o meu dinheiro
Trabalhando o ano inteiro
Numa cerâmica
Fabricando pote
E lá no Alto da Mooca
Eu comprei um lindo lote
Dez de frente, dez de fundo
Construí minha maloca
Me disseram
Que sem planta não se pode construir
Mas quem trabalha
Tudo pode conseguir
João Saracura
Que é fiscal da prefeitura
Foi um grande amigo
Arranjou tudo pra mim
Por onde andará
Joca e Mato Grosso
Aqueles dois amigos
Que não quis me acompanhar
Estarão jogados
Na avenida São João
Ou vendo o sol quadrado
Na detenção
Minha maloca
A mais linda que eu já vi
Hoje está legalizada
Ninguém pode demolir
Minha maloca
A mais linda desse mundo
Ofereço aos vagabundos
Que não têm onde dormir.
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